terça-feira, 15 de novembro de 2011

UMA PONTE PARA MOSCOU

UMA PONTE PARA MOSCOU

Nessa tarde de sexta-feira, aguardo a visita de Valentin e a minha expectativa é grande. Valentin é natural de uma província russa, mais precisamente da Sibéria, filho de uma jovem comunista judia julgada e condenada ao campo de concentração na Sibéria por aqueles que representavam o alinhamento mais perverso da cortina de ferro. Ali a sua mãe conhecera seu pai, e desse encontro e convivência nascera Valentin, na vastidão rigorosa de uma região onde, de três em três meses, a noite cai sobre a natureza. Quando tem dia, este não passa de um lampejo de claridade cinza, acompanhado dos braços gelados que tudo abarcam.  Seus pais deram-lhe nome apropriado, pois sua teimosia, persistência e resistência o tornam sobrevivente de uma história de muito amor e esperança, tempos de muitas dificuldades; aos seis anos de idade, Valentin, na condição de órfão, é obrigado a olhar para o mundo como um ser fruto de um amor banido da felicidade; por outro lado, é forjado de uma esperança indestrutível.

O anúncio veio da ante-sala. O professor Valentin acaba de chegar, acompanhado de uma amiga em comum e de sua intérprete. Cumprimento-o curiosa. Sei quase nada da língua russa, mas a expressão do prof. Valentin o faz comunicar-se pelos olhos. A tradutora se insere de forma magistral ao traduzir o que o professor tão determinadamente inicia a dizer. É um momento mágico porque o pedaço da Rússia que eu aprendi a enxergar estava ali na minha frente. Pelos olhos de Valentin, viajo para a Sibéria, Moscou. Penso no que a história pode fazer com as pessoas ou no que podem fazer das suas vidas. Sinto-me passarinho naquela primavera vermelha, naquele outono de folhas caídas sobre as calçadas por onde marcha uma revolução permanente entre os povos, a cultura, a solidariedade, a dignidade. Tenho dificuldade de tirar meus olhos dos olhos de Valentin. Ele gesticula, tem tom de voz emocionado e me diz que só o amor pode salvar o mundo. O que seria de mim sem esse sentimento de amor? Os olhos dele o expressam. Não importa o lugar, o tempo, os governos, o sistema, porque o amor tem sua própria lógica, tem a dimensão do todo. Pela luz de seus olhos, vi um tempo de guerra que ameaça engolir os mais pobres de espírito. Declara: “Eu não estou aqui para pedir nada, tenho tudo que preciso”.

Na lista dos maiores poetas do mundo comungamos da mesma paixão pelo poeta chileno Pablo Neruda e pelo poeta russo Maiakóvsk: "Sem forma revolucionária não há arte revolucionária" . Uma mesa de trabalho e o seu tablado em fórmica nos colocam um frente ao outro. Esclarece-me a sua intenção de ser artesão do teatro: fazer com as mãos do coração. Teatro é aquilo que toca a gente e é capaz de transformar; se não for isso, não é teatro.

Conta-me sobre sua determinação em tempo de pouca abertura, sobre sua contribuição assídua para uma associação chilena com a responsabilidade de cuidar da luta e do movimento político da esquerda no Chile. As doações dialogavam com o sonho de Valentin de um dia poder visitar o Chile e caminhar no solo que Neruda, com paixão ardorosa, semeava para toda a América Latina. Em 1997, plantou seus pés no solo chileno. Uma comunista chilena foi sua companhia numa tarde azul em visita a Isla Negra. Um pedido seu o fez estar só para chorar copiosamente a memória daquele que, em vida, não pôde abraçar, mas a sua poesia o acompanhou em momentos de pura lucidez em que o amor mostrava sua força e a sua humanidade. Caminhou nos aposentos do poeta como uma borboleta em manhãs de outono, à brisa de um planeta de mulheres e homens em busca da felicidade e da paz. Estar no ambiente, nas coisas em que o poeta da esperança deixara impressões de uma luta para ser alimentada, cuidada pelo amor e pela coragem dos que se veem libertados causa-lhe muita emoção. Um detalhe naquela casa o trouxe mais próximo ao poeta. O banheiro de Neruda é uma galeria de arte que se conserva através dos anos. Do teto ao piso, a parede segura imagens de mulheres nuas, vertiginosamente sensuais, em poses de fazer delirar os homens de paixões acesas. Por entre os lábios, Valentin deixa escapar: “Passei a compreender melhor o poeta”.

A tarde esvai-se como um bando de pássaros em revoada, em degredo, para os recantos mais escondidos. Penso: somos como os pássaros, sempre na ilusão de uma suposta liberdade. E a liberdade eu vi nos olhos de Valentin. Ele a trouxe de tão longe e enebriou meu coração, minha saliva adocicada de frutas sazonais próprias dos trópicos.

A tradutora chama-lhe a atenção para o horário da oficina. Recebo de Valentin um guia turístico de Moscou, um chocolate russo, uma caneta em estilo artesanal. Toco naqueles objetos com profundo respeito, porque sei do esforço de tantos para que eles, os objetos, pudessem chegar a mim. Com a caneta em artesania russa, dedico dois livros a Valentin.

 Depois um abraço de duas almas que creem no amor com a mesma força e que se veem refletidas, uma nas claras águas do Atlântico quando se junta ao rio Ceará, e a outra na correnteza  do rio Amur (Oblast de Amur). Afinal, o mar é um só, e todas as águas correm para lá. Da janela do escritório, vejo o vulto de Valentin, que abre seus longos braços num gesto de generosidade plena a projetar-se na nossa tímida calçada da praça do ser.

Por
Íris Tavares
Fortaleza (CE), agosto de 2011.

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